Seria Eça um visionário?
Estou em crer que quando me foi feito o convite para participar deste blog, nada mais se esperava que não fosse a minha capacidade para analisar as facetas mais "ligeiras" da nossa sociedade. Isto tentando sempre ser o mais descomprometido, irónico e engraçado possível.
Não obstante nada me impede de, de vez em quando, optar por um discurso mais solene, enveredando nas minhas fugazes contribuições, pela análise de assuntos de índole mais intelectual e porventura de um maior grau de inteligibilidade.
Só neste modelo de discurso me poderei fazer entender junto de uma classe especial de profissionais existente no nosso país. A estes rogo o meu perdão por almejar fazer-me entender junto de tão elevado grupo de intelectuais desportivos.
Como me falham as palavras e o título do "post" o indica, por minha iniciativa deixo a um Carlos uma adaptação livre de Eça.
"Quando entrou no quarto foi ver-se ao espelho, enternecido de sentir-se tão bom - e vinham-lhe ao mesmo tempo baforadas de vaidade, um antegosto de desforra, pensando que num dia, próximo talvez, apareceria àquela Sociedade que o ignorava e o desdenhava, poderoso, num terror de apoteose popular. Deitou-se, fez maquinalmente o sinal-da-cruz, como tinha por hábito e adormeceu cansado numa cama estranha, num país estranhamente irmão, sob o peso de um estranhamente desnivelado resultado." (de quem estaria Eça a falar?)
"Quando voltou para casa, fechou-se no quarto e escreveu ao Madaíl, que então vivia em Lisboa, uma carta em que depois de falar, num lirismo amplo, «da tenebrosa solidão da sua alma», e «das suas aspirações incessantes para um ideal maior», lhe pedia que averiguasse quem era aquele "jôgadô" vestido de amarelo, de quem tínhamos sofrido a violação tripla nas malhas da rede: queria saber onde morava, quais as suas relações, os seus hábitos, «enfim faça-me sobre ele um estudo minucioso». E começou a esperar a resposta - pensando nele." (a quem atribuiria Eça tais pensamentos?)
" Com que deleite, pisou enfim as lajes ainda húmidas dos passeios, respirou a friagem de Inverno, o ar de Lisboa, que, depois do pesadume das ruas de Brasília, lhe parecia ter a vitalidade oxigenada onde se dilatam as faculdades! Embasbacava para o resumo do jogo que corria na loja à sua direita; estacava, pasmando para as reviengas do Robinho com um rosto pálido de fantasmas passados; voltava-se com admiração para seguir os carros perfilados; e da claridade das luzes, da vastidão das ruas, da multidão sussurrante, vinha-lhe como que uma sensação de inactividade espalhada, de paixões, de grandezas vagas que o perturbavam. Era como se a atmosfera que rodeou o jogo estivesse saturada das emanações de uma pobre vida, sábia, idealizadora e ardente!" (e quem será este personagem?)
"Carlos ia de grupo em grupo: sentia aflito, uma vaga brutalidade ambiente, batia-lhe o coração cada vez que via um olhar impaciente voltar-se para o relógio, ou uma boca abrir-se devagar
num bocejo de debilidade." (quem receia Carlos?)
Espero que todos compreendam a minha mísera tentativa de adaptar nas mínimas condições estes excertos da obra "A Capital" do grande Eça - é o volume 2 daqueles livrinhos verdes que os nossos pais tem na estante lá de casa e que já começam a ter as páginas amarelas da falta de uso :) - e que perdoem a minha ousadia, ao tentar com eles dar uma ideia de todos os sentimentos que me assolaram durante o visionamento do jogo desta madrugada. Vejam bem que eu ainda tenho pachorra para estar acordado até às tantas para ver dúzia e meia de portugueses em pleno gozo de período de férias a tentarem chegar aos calcanhares (literalmente!) de uma das melhores selecções do mundo.
É caso para dizer: Uai! E não é que o burro sou eu? Ioooooonnnnn
PS1: Quem é aquele senhor com vulcões na cara que responde pelo acrónimo CR7 e que usa uma braçadeira de capitão no braço? É jogador de futebol?
PS2: Acham que Eça foi visionário apenas para o futebol? Então leiam este texto publicado em 1841:
"Estamos perdidos há muito tempo...
O país perdeu a inteligência e a consciência moral.
Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada.
Os caracteres corrompidos.
A prática da vida tem por única direcção a conveniência.
Não há princípio que não seja desmentido.
Não há instituição que não seja escarnecida.
Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos.
Ninguém crê na honestidade dos homens públicos.
Alguns agiotas felizes exploram.
A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia.
O povo está na miséria.
Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente.
O estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
A certeza desde rebaixamento invadiu todas as consciências.
Diz-se por toda a parte, o país está perdido!"
Significativo não é? :)
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